Socorro! Não quero levar um salto na barriga!

Camilla saiu da estação correndo. Pensando no que poderia acontecer. O que seria que Sílvia seria capaz? Desfigurá-la com unhadas e golpes de canivete? A Gangue de Salto era perigosa, agora com a Silvinha Couro Mole ficaria pior. Ela era esperta, mais esperta que as outras garotas da gangue. Correu para casa. Encontrou dona Fátima e a abraçou. Parecia uma menina de cinco anos assustada. Parecia a menina de cinco anos que se viu sozinha na casa dos avós.

— Vovó, a Sílvia entrou para a Gangue de Salto! Estou com medo!

— Verdade, Camilla?

— Eu tô falando a verdade, vó. Sou o primeiro alvo dela. Aposto que ela vai me marcar com um salto na minha barriga. Não é isso que o povo da Gangue faz nos seus inimigos?

— Sílvia entrou para uma gangue?

— E não é o que eu estou dizendo, vó?

— Deixa para lá, filhinha. Seu aniversário é semana que vem. Já decidiu o tema?

— Uma festa à fantasia, vó. Eu já disse no mês passado. Providenciaram minha roupa de astronauta?

— Já. Foi cara, sabia?

— Pelo menos uma coisa para me distrair…

Camilla foi para o quarto suspenso e de janelas fechadas com cortinas brancas. As cortinas brancas já estavam começando a ficar meio amareladas. Quando elas eram lavadas, eram substituídas. Aquela vista, mesmo que maravilhosa, lhe ardia nos olhos.

Aquelas cortinas estavam naquele quarto desde o aniversário de seis anos. Enquanto esperava por seus pais a menina ficava horas olhando para o horizonte, uma vista que era muito bonita, com montanhas ao fundo e uma estrada. Sempre imaginava que o carro de Alexandra e de Carlos voltaria com alguns suvenires de Nova York, como aqueles globos de neve. E que Rosalyn nasceria em casa. E que Camilla teria uma infância normal.

Mas em vez disso, Camilla ficou esperando. O carro não apareceu. Rosalyn nasceu em qualquer outro lugar do mundo. E Camilla nunca mais teve uma infância normal.

O pior pesadelo de Milla (como era chamada por seus amigos) virou realidade aos oito anos. Alguém descobriu que os pais da menina haviam sumido. Foi no dia de uma reunião de pais e mestres. A diretora do colégio queria que os pais de Camilla aparecessem, pois a menina havia quebrado algumas janelas por pura e simples raiva. Estava entediada e quebrou as janelas, pois queria sair. A professora, que estava dando uma aula de História do Brasil notou que as janelas haviam sido quebradas e viu cacos de vidro nas coisas de Camilla. Mesmo que Milla fosse uma das melhores alunas, era mentalmente instável.

— Pequena vândala! — gritou Elizabeth, a professora. Ela já estava de marcação com Camilla.

Chamou a diretora.

— Camilla, você poderia chamar os seus pais? — disse dona Márcia, a diretora.

— Eu não tenho pais e você sabe disso. Eles sumiram quando eu tinha cinco anos. E quem contou foi a tia Eliza, você se lembra? — apesar da pouca idade, Camilla tinha uma desenvoltura invejável para uma menina de oito anos.

Infelizmente, os outros alunos estavam ouvindo a conversa de Milla e da diretora. Quando a menina saiu, ouviu alguns comentários, do tipo:

— Olha a enjeitadinha. Quer uma chupeta?

— Não é a toa que teus pais te abandonaram, você é feia demais.

— Olha só, Camilla. Quer um passaporte para poder ir procurar papai e mamãe?

Quem havia dito a última frase foi Sílvia. Uma menina invejosa e burra, mas era esperta quando queria se dar bem. Só passava de ano porque tinha gente para lhe dar cola.

Camilla tomou naquele dia uma surra na saída. Uma surra dos amigos de Sílvia: Paulo, André, Sávio e Felipe. Bateram com tanta força na garota que ela começou a sangrar pelo nariz, pela boca e seus olhos ficaram machucados. Passou uma semana internada e a menina chegou em casa em uma maca hospitalar cheia de arranhões, marcas de mordida, parecia que havia sido atacada por cães raivosos, e não por quatro meninos. Teve diversas sequelas.

Seus olhos, antes de um azul profundo e ao mesmo tempo aterrorizante, ficaram em um tom de azul tão pálido que parecia cinza. E ela estaria condenada a viver usando óculos. Milla ainda guardava um velho pano manchado de sangue tipo AB+. Seu sangue. Os meninos foram expulsos e Camilla foi transferida para uma escola particular.

Continuou com o seu histórico de aluna exemplar. E continuava a atrair inimigos. Mas na escola particular conheceu seus amigos Levi e Natália. A dupla era mais velha e se metia em muita confusão. E Camilla os acompanhava. Resultado: os três foram expulsos. Camilla teve que voltar a estudar em escola pública.

Com nove anos começou a tocar violão. Como também tocava piano, a menina aprendia bem rápido.

A paixão da menina por David Bowie começou quando tinha 10 anos. Uma noite ela foi revistar o porão e encontrou uma caixa cheia de discos. Aquilo despertou sua curiosidade. Ela pegou uma edição de “Aladdin Sane”. Adorou a capa. Tentou ouvir o disco, mas para o seu azar, estava arranhado. Levou para seu José.

— Vô, quem é esse cara que tá com um raio pintado no rosto?

— Estou vendo que você acabou de conhecer David Bowie.

— David o quê?

— David Bowie. Quando eu era mais jovem eu ouvia bastante. Enquanto eu morava na Inglaterra cheguei a ir a alguns shows dele.

— Quando você era mais jovem?

— Eu morei uns anos na Inglaterra. Fiz faculdade por lá. Fui exilado com minha família, meu pai era contra o regime militar. Toda a família foi para a Inglaterra. Esse disco que está em suas mãos e alguns outros que estão lá embaixo foram comprados lá. Que pena que esse está arranhado… prometo que te compro um novo. Esses discos eram da sua mãe. Mas a Alexandra não gosta de rock, então são seus.

— Obrigada, vô! Eu adorei essa capa, vô. É tão bonita…

Camilla foi para a caixa e pegou “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” e ficou ouvindo. Aquele som não era celestial, mas a menina não gostou.

Mas passou uns dias e Camilla voltou a ouvir aquele disco e se apaixonou por aquele alien ruivo que dizia que o mundo iria acabar em cinco anos, mas que ao mesmo tempo se autodestruía. E foi elegendo as suas faixas favoritas:

— “Starman”, “Suffragette City”, “Hang onto Yourself”…

Seu inglês melhorou bastante. Aos 11 anos ela queria ir para K. West[1]. Não ganhou a viagem para Londres, mas ganhou a edição de “Aladdin Sane” sem nenhum tipo de arranhão de Natal. Ela colocou a capa do disco do avô.

Chegou a adolescência. Normalmente é um período complicado, mas para Camilla foi terrível. Como voltou a estudar junto com Sílvia, sempre ia para a escola morrendo de medo. Tremia quando pensava que corria risco de voltar para casa de novo em uma maca de hospital.

Nessa época, Milla conheceu Anabela. Cega de nascimento era detestada por Sílvia, mesmo que as duas fossem irmãs. Por causa dos laços de sangue, Sílvia não tocava em um fio de cabelo da irmã que não enxergava.

— Oi. — disse Camilla.

— Quem está aí? — disse Anabela.

— Camilla. Sou a nova aluna.

— Onde você está?

— Bem na sua frente. Você não enxerga?

— Não. Sua voz é tão bonita… Parece a de um anjo… Tem certeza de que você é desse mundo?

— Claro.

Anabela virou uma espécie de conselheira de Milla.

Camilla conheceu seu namorado, Luciano, enquanto ele ainda estudava. Luciano, por ser irmão de Natália, conhecia a menina.

Mas o namoro só começou havia sete meses.

Angela trabalhava como bibliotecária e estudou com Luciano. Mesmo que Camilla detestasse a biblioteca da escola (dizia que a biblioteca dos seus avós era maior que a do colégio) ela ia somente para conversar sobre livros com Angie.

— Quer um livro legal?

— Qual? É clássico? — Angela adorava livros de autores clássicos. Seus favoritos era Machado de Assis e José de Alencar.

— Não. O livro em que a sua xará, a Angela Bowie, conta todos os detalhes sórdidos do casamento dela com David Bowie. Só que tá em inglês.

Camilla emprestou. Angela nunca mais devolveu o livro.

Dona Fátima ensinou sua única neta a costurar. Aquilo era um passatempo, mas que a menina praticava bastante. Não era à toa que tinha no quarto uma máquina de costura. Pegava diversos retalhos e ficava brincando. Certa vez Camilla fez um vestido de uma cortina velha e chegou a ir para uma festinha de aniversário com ele. Todos elogiaram o vestido bonito, até descobrirem que foi feito de uma cortina carcomida e cheia de traças.

Camilla é fruto de uma combinação explosiva: nasceu de um relacionamento sem amor, foi abandonada pelos pais com apenas cinco anos, seus avós a criaram praticamente sem nenhum tipo de regra e ela se começa a se viciar em cigarros e bebida ainda adolescente.

Bebeu sua primeira dose aos 12 anos. Se viciou em álcool com 14 anos. Nunca chegava bêbada em casa.

Começou a fumar aos 13 anos. Gastava parte de sua mesada com cigarros. O que sobrava comprava tecido para fazer roupas e discos.

Ainda aos 13 anos teve uma crise depressiva extrema. Tentou se matar.

Seus avós tentaram levar a uma clínica psiquiátrica. O médico receitou um coquetel de remédios controlados que Camilla havia parado de tomar.

Ganhou de presente de aniversário de 15 anos da sua pior inimiga[2] uma corrente de amarrar bicicletas. Mas para deixar Sílvia com raiva usou o presente dela no pescoço, mas como dona Fátima mandou tirá-la de tal lugar, utilizava a corrente no braço. A pulseira mais estranha do Universo. Até hoje a menina utilizava a pesada corrente no braço esquerdo.

— Essas lembranças parecem que dilaceram meus neurônios. — Camilla disse, baixinho.

Pegou um livro que gostava, mesmo que não gostasse nem um pouco de ler. “Mensagem” de Fernando Pessoa, o poeta favorito de seu José. Passou uma hora lendo e foi costurar qualquer coisa.

Ainda bem que o seu aniversário de 16 anos estava chegando. Uma festa a fantasia. Camilla seria uma versão com peito e bunda de Major Tom. Se bem que se fosse de Ziggy Stardust seria melhor… Thin White Duke? Nem pensar! Teria que emagrecer uns 8 quilos.

Angela chegou de surpresa. Como era o típico dela. Ia devolver um disco.

— Oi, Milla!

— AHHHHHHHH!

— Desculpa se eu te assustei.

— Ai que susto, Angela! Veio devolver o meu livro?

— Não. Esse disco aqui. Quadrophenia do The Who. É mesmo demais. De quem é?

— Do vovô. Vovó gosta de música clássica. Eu dei de presente para ela a trilha sonora de “Laranja Mecânica”. Música clássica passada no sintetizador. Ela gostou.

— Seu avô ainda tem aquele livro do José Saramago? “Memorial do Convento”?

— Deve ter. Ele podia fazer uma doação. Tem tanto livro que ele não lê…

Angela entregou o disco. Camilla deixou na caixa de discos.

— Sua festa a fantasia vai ser demais. A minha fantasia vai ser de… Eu não vou contar, vai ser surpresa! Tchau!

Camilla ficou novamente só. Detestava aquilo que os seres humanos chamavam de solidão, mas parecia sua única companhia.

 


[1] Onde foi tirada a capa do disco “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”.

[2] Sílvia.

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