A carta

Havia muito tempo em uma Inglaterra dominada pela hipocrisia existiu uma banda chamada Sex Pistols. O garoto-propaganda da banda era o baixista Sid Vicious. O rapaz não tocava porra nenhuma, ficava chapado nos ensaios, os outros membros dos Pistols o detestavam e como se não bastasse isso, era um arsenal químico ambulante. Consequência: overdose. Sid morreu de overdose em 1977.

Sex Pistols

Na edição de 31 de março de 1979, quase um mês depois da morte de Sid Vicious, do Sex Pistols, o lamento de um certo Eric Russell foi escolhido como a carta da semana. Eric era Renato Russo. A carta tinha o seguinte nome: “We Could be Heroes… until Sid died” (Nós poderíamos ser heróis, até que Sid morreu, uma piada com a canção “Heroes”, de 1977).Abaixo, a tradução da carta:

“Acho que meu pai sabia, ele provavelmente viu na TV ou leu nos jornais, mas não me contou. Um amigo me disse e eu não acreditei. Tive que ligar para o meu professor de violão e perguntar se ele tinha ouvido alguma coisa. Aconteceu numa sexta-feira, mas eu soube da notícia domingo à noite.

Nada me atingiu do jeito que a morte de Sid me atingiu. Chorei a noite toda, e era como uma espécie de grito, doloroso, não só por Sid, mas por tudo. Perdi completamente o controle de mim mesmo. Sabe, nada acontece aqui, nunca. Eu sempre recebo as notícias duas semanas atrasado. Não se lança nada de new wave (ou qualquer coisa boa que interesse) aqui, eu tenho que comprar importados do Rio. Tudo é discoteca, Travolta ou samba.

Quando a coisa do punk começou, eu e meus amigos entramos de cabeça porque alguma coisa estava acontecendo. Nos envolvemos com a música como não acontecia desde os Beatles e os Stones. Era diferente. Sid, John e o Clash eram todos heróis. Eles pensavam do jeito que a gente pensava; nem mesmo o Airplane (Jefferson Airplane, grupo psicodélico formado em San Francisco no auge do flower power) tinha batido tão forte em mim. Dava certo medo, não era apenas ser um fã burro.

(…) Ele morreu por causa do que era. E como Brian (Jones, guitarrista dos Stones, que morreu afogado na piscina em 1969), Jim (Morrison, vocalista do The Doors, morto em 1971) e Gram (Parsons, ex-The Byrds, pioneiro do country rock, que morreu em 1973 de overdose de morfina e tequila em Joshua Tree, Califórnia e foi cremado) as pessoas só vão entender depois de alguns anos. Alguns vão esquecer, outros não, alguns já esqueceram, mas quando um herói é de verdade (eu digo herói mesmo), ele sobrevive. Aposto que alguém vai rir lendo isso. Pode rir, você não entende (…)

Eu cresci milênios desde 75 para cá. Mas ainda tenho 18 anos. Vejo as coisas um pouco diferentes agora e odeio… mas vou passar por isso e não vou perder (ganhar) como Sid Vicious fez. E eu vou fazer por ele porque ele fez por mim.” (Eric Russell, Brasília, GANHADOR DO LP).

melodayf

Socorro! Não quero levar um salto na barriga!

Camilla saiu da estação correndo. Pensando no que poderia acontecer. O que seria que Sílvia seria capaz? Desfigurá-la com unhadas e golpes de canivete? A Gangue de Salto era perigosa, agora com a Silvinha Couro Mole ficaria pior. Ela era esperta, mais esperta que as outras garotas da gangue. Correu para casa. Encontrou dona Fátima e a abraçou. Parecia uma menina de cinco anos assustada. Parecia a menina de cinco anos que se viu sozinha na casa dos avós.

— Vovó, a Sílvia entrou para a Gangue de Salto! Estou com medo!

— Verdade, Camilla?

— Eu tô falando a verdade, vó. Sou o primeiro alvo dela. Aposto que ela vai me marcar com um salto na minha barriga. Não é isso que o povo da Gangue faz nos seus inimigos?

— Sílvia entrou para uma gangue?

— E não é o que eu estou dizendo, vó?

— Deixa para lá, filhinha. Seu aniversário é semana que vem. Já decidiu o tema?

— Uma festa à fantasia, vó. Eu já disse no mês passado. Providenciaram minha roupa de astronauta?

— Já. Foi cara, sabia?

— Pelo menos uma coisa para me distrair…

Camilla foi para o quarto suspenso e de janelas fechadas com cortinas brancas. As cortinas brancas já estavam começando a ficar meio amareladas. Quando elas eram lavadas, eram substituídas. Aquela vista, mesmo que maravilhosa, lhe ardia nos olhos.

Aquelas cortinas estavam naquele quarto desde o aniversário de seis anos. Enquanto esperava por seus pais a menina ficava horas olhando para o horizonte, uma vista que era muito bonita, com montanhas ao fundo e uma estrada. Sempre imaginava que o carro de Alexandra e de Carlos voltaria com alguns suvenires de Nova York, como aqueles globos de neve. E que Rosalyn nasceria em casa. E que Camilla teria uma infância normal.

Mas em vez disso, Camilla ficou esperando. O carro não apareceu. Rosalyn nasceu em qualquer outro lugar do mundo. E Camilla nunca mais teve uma infância normal.

O pior pesadelo de Milla (como era chamada por seus amigos) virou realidade aos oito anos. Alguém descobriu que os pais da menina haviam sumido. Foi no dia de uma reunião de pais e mestres. A diretora do colégio queria que os pais de Camilla aparecessem, pois a menina havia quebrado algumas janelas por pura e simples raiva. Estava entediada e quebrou as janelas, pois queria sair. A professora, que estava dando uma aula de História do Brasil notou que as janelas haviam sido quebradas e viu cacos de vidro nas coisas de Camilla. Mesmo que Milla fosse uma das melhores alunas, era mentalmente instável.

— Pequena vândala! — gritou Elizabeth, a professora. Ela já estava de marcação com Camilla.

Chamou a diretora.

— Camilla, você poderia chamar os seus pais? — disse dona Márcia, a diretora.

— Eu não tenho pais e você sabe disso. Eles sumiram quando eu tinha cinco anos. E quem contou foi a tia Eliza, você se lembra? — apesar da pouca idade, Camilla tinha uma desenvoltura invejável para uma menina de oito anos.

Infelizmente, os outros alunos estavam ouvindo a conversa de Milla e da diretora. Quando a menina saiu, ouviu alguns comentários, do tipo:

— Olha a enjeitadinha. Quer uma chupeta?

— Não é a toa que teus pais te abandonaram, você é feia demais.

— Olha só, Camilla. Quer um passaporte para poder ir procurar papai e mamãe?

Quem havia dito a última frase foi Sílvia. Uma menina invejosa e burra, mas era esperta quando queria se dar bem. Só passava de ano porque tinha gente para lhe dar cola.

Camilla tomou naquele dia uma surra na saída. Uma surra dos amigos de Sílvia: Paulo, André, Sávio e Felipe. Bateram com tanta força na garota que ela começou a sangrar pelo nariz, pela boca e seus olhos ficaram machucados. Passou uma semana internada e a menina chegou em casa em uma maca hospitalar cheia de arranhões, marcas de mordida, parecia que havia sido atacada por cães raivosos, e não por quatro meninos. Teve diversas sequelas.

Seus olhos, antes de um azul profundo e ao mesmo tempo aterrorizante, ficaram em um tom de azul tão pálido que parecia cinza. E ela estaria condenada a viver usando óculos. Milla ainda guardava um velho pano manchado de sangue tipo AB+. Seu sangue. Os meninos foram expulsos e Camilla foi transferida para uma escola particular.

Continuou com o seu histórico de aluna exemplar. E continuava a atrair inimigos. Mas na escola particular conheceu seus amigos Levi e Natália. A dupla era mais velha e se metia em muita confusão. E Camilla os acompanhava. Resultado: os três foram expulsos. Camilla teve que voltar a estudar em escola pública.

Com nove anos começou a tocar violão. Como também tocava piano, a menina aprendia bem rápido.

A paixão da menina por David Bowie começou quando tinha 10 anos. Uma noite ela foi revistar o porão e encontrou uma caixa cheia de discos. Aquilo despertou sua curiosidade. Ela pegou uma edição de “Aladdin Sane”. Adorou a capa. Tentou ouvir o disco, mas para o seu azar, estava arranhado. Levou para seu José.

— Vô, quem é esse cara que tá com um raio pintado no rosto?

— Estou vendo que você acabou de conhecer David Bowie.

— David o quê?

— David Bowie. Quando eu era mais jovem eu ouvia bastante. Enquanto eu morava na Inglaterra cheguei a ir a alguns shows dele.

— Quando você era mais jovem?

— Eu morei uns anos na Inglaterra. Fiz faculdade por lá. Fui exilado com minha família, meu pai era contra o regime militar. Toda a família foi para a Inglaterra. Esse disco que está em suas mãos e alguns outros que estão lá embaixo foram comprados lá. Que pena que esse está arranhado… prometo que te compro um novo. Esses discos eram da sua mãe. Mas a Alexandra não gosta de rock, então são seus.

— Obrigada, vô! Eu adorei essa capa, vô. É tão bonita…

Camilla foi para a caixa e pegou “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” e ficou ouvindo. Aquele som não era celestial, mas a menina não gostou.

Mas passou uns dias e Camilla voltou a ouvir aquele disco e se apaixonou por aquele alien ruivo que dizia que o mundo iria acabar em cinco anos, mas que ao mesmo tempo se autodestruía. E foi elegendo as suas faixas favoritas:

— “Starman”, “Suffragette City”, “Hang onto Yourself”…

Seu inglês melhorou bastante. Aos 11 anos ela queria ir para K. West[1]. Não ganhou a viagem para Londres, mas ganhou a edição de “Aladdin Sane” sem nenhum tipo de arranhão de Natal. Ela colocou a capa do disco do avô.

Chegou a adolescência. Normalmente é um período complicado, mas para Camilla foi terrível. Como voltou a estudar junto com Sílvia, sempre ia para a escola morrendo de medo. Tremia quando pensava que corria risco de voltar para casa de novo em uma maca de hospital.

Nessa época, Milla conheceu Anabela. Cega de nascimento era detestada por Sílvia, mesmo que as duas fossem irmãs. Por causa dos laços de sangue, Sílvia não tocava em um fio de cabelo da irmã que não enxergava.

— Oi. — disse Camilla.

— Quem está aí? — disse Anabela.

— Camilla. Sou a nova aluna.

— Onde você está?

— Bem na sua frente. Você não enxerga?

— Não. Sua voz é tão bonita… Parece a de um anjo… Tem certeza de que você é desse mundo?

— Claro.

Anabela virou uma espécie de conselheira de Milla.

Camilla conheceu seu namorado, Luciano, enquanto ele ainda estudava. Luciano, por ser irmão de Natália, conhecia a menina.

Mas o namoro só começou havia sete meses.

Angela trabalhava como bibliotecária e estudou com Luciano. Mesmo que Camilla detestasse a biblioteca da escola (dizia que a biblioteca dos seus avós era maior que a do colégio) ela ia somente para conversar sobre livros com Angie.

— Quer um livro legal?

— Qual? É clássico? — Angela adorava livros de autores clássicos. Seus favoritos era Machado de Assis e José de Alencar.

— Não. O livro em que a sua xará, a Angela Bowie, conta todos os detalhes sórdidos do casamento dela com David Bowie. Só que tá em inglês.

Camilla emprestou. Angela nunca mais devolveu o livro.

Dona Fátima ensinou sua única neta a costurar. Aquilo era um passatempo, mas que a menina praticava bastante. Não era à toa que tinha no quarto uma máquina de costura. Pegava diversos retalhos e ficava brincando. Certa vez Camilla fez um vestido de uma cortina velha e chegou a ir para uma festinha de aniversário com ele. Todos elogiaram o vestido bonito, até descobrirem que foi feito de uma cortina carcomida e cheia de traças.

Camilla é fruto de uma combinação explosiva: nasceu de um relacionamento sem amor, foi abandonada pelos pais com apenas cinco anos, seus avós a criaram praticamente sem nenhum tipo de regra e ela se começa a se viciar em cigarros e bebida ainda adolescente.

Bebeu sua primeira dose aos 12 anos. Se viciou em álcool com 14 anos. Nunca chegava bêbada em casa.

Começou a fumar aos 13 anos. Gastava parte de sua mesada com cigarros. O que sobrava comprava tecido para fazer roupas e discos.

Ainda aos 13 anos teve uma crise depressiva extrema. Tentou se matar.

Seus avós tentaram levar a uma clínica psiquiátrica. O médico receitou um coquetel de remédios controlados que Camilla havia parado de tomar.

Ganhou de presente de aniversário de 15 anos da sua pior inimiga[2] uma corrente de amarrar bicicletas. Mas para deixar Sílvia com raiva usou o presente dela no pescoço, mas como dona Fátima mandou tirá-la de tal lugar, utilizava a corrente no braço. A pulseira mais estranha do Universo. Até hoje a menina utilizava a pesada corrente no braço esquerdo.

— Essas lembranças parecem que dilaceram meus neurônios. — Camilla disse, baixinho.

Pegou um livro que gostava, mesmo que não gostasse nem um pouco de ler. “Mensagem” de Fernando Pessoa, o poeta favorito de seu José. Passou uma hora lendo e foi costurar qualquer coisa.

Ainda bem que o seu aniversário de 16 anos estava chegando. Uma festa a fantasia. Camilla seria uma versão com peito e bunda de Major Tom. Se bem que se fosse de Ziggy Stardust seria melhor… Thin White Duke? Nem pensar! Teria que emagrecer uns 8 quilos.

Angela chegou de surpresa. Como era o típico dela. Ia devolver um disco.

— Oi, Milla!

— AHHHHHHHH!

— Desculpa se eu te assustei.

— Ai que susto, Angela! Veio devolver o meu livro?

— Não. Esse disco aqui. Quadrophenia do The Who. É mesmo demais. De quem é?

— Do vovô. Vovó gosta de música clássica. Eu dei de presente para ela a trilha sonora de “Laranja Mecânica”. Música clássica passada no sintetizador. Ela gostou.

— Seu avô ainda tem aquele livro do José Saramago? “Memorial do Convento”?

— Deve ter. Ele podia fazer uma doação. Tem tanto livro que ele não lê…

Angela entregou o disco. Camilla deixou na caixa de discos.

— Sua festa a fantasia vai ser demais. A minha fantasia vai ser de… Eu não vou contar, vai ser surpresa! Tchau!

Camilla ficou novamente só. Detestava aquilo que os seres humanos chamavam de solidão, mas parecia sua única companhia.

 


[1] Onde foi tirada a capa do disco “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”.

[2] Sílvia.

Cai na real, volta pra Suffragette City!

Mais um capítulo de “Cadê a Luz do Fim do Túnel?”. Camilla tem uma crise depressiva, Seu José descobre que sua netinha é uma fumante inveterada, prova de piano com o Mr. Jones, Sílvia entra para a Gangue de Salto, e seu primeiro alvo é a nossa protagonista.

“As aulas estavam massacrantes para aquela classe de ensino médio. Nem mesmo as férias que se aproximavam ajudavam a levantar a moral dos estudantes. Camilla, mesmo sendo uma aluna modelo, estava morrendo de vontade que as férias chegassem e com isso, seu aniversário de 16 anos.

"Camilla, mesmo sendo uma aluna modelo, estava morrendo de vontade que as férias chegassem e com isso, seu aniversário de 16 anos."
“Camilla, mesmo sendo uma aluna modelo, estava morrendo de vontade que as férias chegassem e com isso, seu aniversário de 16 anos.”

Seus avós estavam viajando. Tinha que se virar para fazer as coisas. Queria que sua mãe, seu pai e Rosalyn estivessem ali. Começou a chorar amargamente. Ligou para todos os amigos, ver se alguém a ajudasse. Uma única pessoa atendeu ao pedido de Camilla.

Levi foi ajudar a levantar a moral da amiga. Naquela semana de junho iria completar dez anos que os pais de Camilla haviam sumido de maneira suspeita.

— Levi, me explica o seguinte: como é que uma pessoa some sem deixar nenhuma espécie de vestígio? — perguntou Camilla, limpando as lágrimas em uma velha fronha.

— Eu não sei, Camilla. Sumir já é estranho, agora sumir sem deixar rastros?! Seus pais foram muito sem-vergonha para abandonar uma garota tão legal como você.

— Mamãe disse para minha avó que eu fodi a vida dela. — disse Camilla.

— Como assim?

— Mamãe era modelo. Mas acabou com a carreira muito jovem. Ela era jovem e tinha uma carreira promissora. Mas cometeu o erro de se apaixonar e ter um bebê. Lembra que eu antigamente tomava tarja preta?

— É, você estava mal.

Camilla vivia à base de tarja preta. Começou a tomar um coquetel de remédios (três) com apenas 13 anos. Mas fazia dois meses que ela não tomava o remédio. Ela não correria risco de morrer de overdose. Ela fumava feito uma louca e bebia. Fingia que tomava o remédio e jogava-o fora.

— Vou tentar te animar, garota. Muda esse seu visual. Está meio apagadinho. Mechas roxas estão fora de moda.

— Esqueceu que não sigo a moda? — disse Camilla, abrindo um pequeno sorriso.

O celular de Levi tocou.

— Ih, é a Angela. Tenho que ir para ver o que ela quer.

— Angie?

Angela Prado era a garota da biblioteca. Usava óculos de lentes grossas, tênis, short jeans e um chapéu que quase escondia seu rosto. E uma camiseta com os dizeres: “Ler é legal, é uma viagem”.

— Tá, vai. Eu quero ficar só.

— Você nunca está só. Eu sei o que você vai fazer: vai para o computador, entrar no Facebook, passar umas duas horas até a dona Fátima pedir para você tomar banho e ir jantar. E você vai voltar para o Facebook e vai continuar conversando com todo mundo. Acertei?

— Isso. Eu comprei uns DVDs, não sei se você vai curtir. Eu ia ver.

Levi pegou o DVD que estava na escrivaninha.

— “Os Pássaros”. Legal, você adora filmes antigos.

— É, eu adoro filmes antigos. Vovô me comprou esse filme semana passada.

— Tchau, Camilla. Vejo você amanhã.

Camilla passou as duas horas seguintes no computador. Seus cabelos estavam meio ressecados, seus dedos estavam cheio de calos por causa das horas que passava digitando, a maquiagem estava borrada por causa da hora em que estava em prantos.

— Hora do banho, Camilla! — já eram cinco da tarde quando gritou dona Fátima. Se não chamasse a netinha, ela não tomaria banho de jeito nenhum.

Como o banheiro era no térreo, Camilla não tinha escolha senão descer. Pegou uma toalha meio velha e foi tomar banho.

O curioso no cabelo cheio de mechas roxas era que a cor não saía com água. Aquelas mechas roxas estavam ali havia dois meses.

Depois do banho Camilla foi assistir à televisão. Passou meia-hora e ela sentiu vontade de vomitar.

— Não tem nada que preste aqui nessa porra de televisão. Vou sair.

Pegou o seu casaco favorito, um velho casaco de couro que estava meio desbotado e foi sair.

— Vai com Deus, netinha. — disse seu José.

Camilla tinha ganhado uma bicicleta havia um mês e só andava nela para sair à noite. O “sair” da Camilla era: ir para uma velha estação de trem, fumar alguns cigarros e beber alguma coisa que não fosse água. Como cerveja, cachaça e uísque. Camilla fumava desde quando tinha 13 anos. E bebia desde o ano anterior. Seus avós não sabiam que a pequena de 1,70 e pouco de altura fumava e bebia. Seus dentinhos não eram amarelos, e ela não parecia uma jovem fumante. Tinha um hálito maravilhosamente fresco, mesmo com os cigarros. E não vomitava nas calçadas.

Na velha estação de trem, havia um bar. Não era o único lugar da cidade que vendia cigarros e bebida a menores.

Encontrou uma amiga, Tamara. Uma garota que era filha da copeira da Casa das Pedrinhas, onde Camilla passou somente cinco anos de sua vida. Tamara chegou a estudar com a filha do patrão, mas de tanto fugir das aulas foi expulsa. E parou de estudar. Trabalhava em um bar como garçonete. Tamara levou um copo de cerveja para a “filha do patrão”.

— Oi, Camilla. Como é que você está? — perguntou Tamara.

— Tô mau, muito mau. Estou um lixo. Quero um cigarro. De qualquer coisa.

— Meu Deus, por quê? Seus avós lhe deram ordem de restrição? O David Bowie morreu?

— Não foi isso. Eu preciso de um cigarro. Só isso.

A “ordem de restrição” era o que restringia a liberdade de Camilla. Isso queria dizer que ela estava proibida de sair de casa. Mas não era a tal ordem de restrição, era a tristeza que a consumia. Tamara sabia que a garota vivia a base de remédio tarja preta. Não mais, porque senão a filha do patrão teria morrido de overdose. As mãos de Camilla tremiam alucinadamente.

— Te acalma, garota. — disse Tamara. — Parece que você não está muito legal.

— ME DÁ UM CIGARRO! — gritou Camilla. — EU PRECISO TRAGAR ALGUMA COISA!

Além das mãos de Camilla tremerem alucinadamente, seu rosto suava. Parecia que não havia Camilla naquele corpo e sim, um corpo que precisava de um exorcismo.

— Nossa, você está muito mal. Toma… — e correu para pegar uma carteira.

Camilla acendeu um cigarro, pegou a carteira com os cigarros restantes e escondeu no bolso, pagou a conta e foi para casa na bicicleta. Não era nem nove horas da noite. Estava calma. Suas mãos não tremiam mais.

Seu José estava esperando sua netinha na porta. As poucas regras de Camilla: dormir cedo, tirar notas 10, manjar bastante no piano e nunca se atrasar. Mandou a menina entrar.

— Onde você esteve esse tempo todo, Camilla?

— Na estação, vô.

— Naquela Sodoma?

Havia muitos relatos de que havia prostitutas, garotos de programa, bêbados e gente que fazia o que não presta. Camilla batizou a estação de trem de Estação Zoo.

— Estava vazia, tinha somente eu.

— O que é isso no seu bolso? — seu José disse, apontando para o bolso de Camilla.

— Nada!

O avô pediu o conteúdo do que havia no bolso.

Descobriu a carteira de cigarros e um isqueiro.

"O avô pediu o conteúdo do que havia no bolso. Descobriu a carteira de cigarros e um isqueiro."
“O avô pediu o conteúdo do que havia no bolso.
Descobriu a carteira de cigarros e um isqueiro Bic.”

— Minha única neta fuma!

— Primeiro: eu não sou sua única neta. Mamãe estava grávida, provavelmente teve o bebê. E segundo: se culpe. Eu comecei a fumar porque eu via você fumando e recolhia as bitucas ainda queimando. Você não deveria ter fumado na minha frente. Me deixe.

— Você quer parar?

— É claro. Meus pulmões não estão dando conta. Mas enquanto não paro… me dê um cigarro.

— Vou te mandar para uma clínica para fumantes.

— Pra quê? Não atenderiam uma menina da minha idade. Sou menor de idade…

— Vai dormir!

Seu José ficou com a carteira e com o isqueiro. Mas pela manhã a neta iria pegar a carteira e o isqueiro, já sabia.

Ele se sentia culpado. Deixava as bitucas nos diversos cinzeiros que havia na casa. E para piorar, estavam sempre acesas.

Camilla foi para seu quarto suspenso. As janelas, como sempre, estavam fechadas com cortinas brancas. As únicas luzes vinham do teto de vidro e de um discreto abajur.

Foi para o computador. Passou das dez até a uma da madrugada conversando com Luciano. Coisas meio melosas como “você é minha anjinha” da parte do Luciano e “razão do meu vício”, da parte de Camilla.

Se cansou do computador. Foi para o espelho. Parecia que via outro alguém lá dentro. Não via a jovem que foi eleita a mais estilosa do colégio.

Estava completamente descabelada, seus olhos cinza estavam melados de remela. A pele branca estava meio gelada, parecia a de um vampiro. Seu nariz começou a sangrar. Pegou uns lenços e foi se deitar na cama. Desistiu.

Já eram umas duas da madrugada. Como o seu quarto tinha isolamento acústico, ela pegou um disco do Pink Floyd. Não sabia que seus pais gostavam daquilo.

— Nada contra o Pink Floyd, mas eu não tenho saco para aturar qualquer outra coisa.

Passou as duas horas seguintes ouvindo a mesma coisa: “The Wall”. Como ela tinha uma carteira de cigarros e um isqueiro escondidos dentro do quarto, ela detonou a carteira enquanto ouvia o disco.

"Passou as duas horas seguintes ouvindo a mesma coisa: “The Wall”. Como ela tinha uma carteira de cigarros e um isqueiro escondidos dentro do quarto, ela detonou a carteira enquanto ouvia o disco."
“Passou as duas horas seguintes ouvindo a mesma coisa: “The Wall”. Como ela tinha uma carteira de cigarros e um isqueiro escondidos dentro do quarto, ela detonou a carteira enquanto ouvia o disco.”

— Puta que pariu, amanhã tem aula de piano. Aquele professor vai me matar de lição.

O professor de piano de Camilla era um inglês, Mr. Jones, e que morava em outra cidade. Era um homem alto, magro e casado com uma das amigas de dona Fátima, dona Anelise. Professor carrasco, que só mandava a menina tocar música clássica. Dona Fátima gostava demais quando a sua netinha tocava alguma sonata para piano. Mas o que Camilla queria tocar era David Bowie. Apesar de curtir música clássica, ela queria tocar algo do seu ídolo-mor.

Como a aula seria à tarde, Camilla ‘dormiu’ até as dez da manhã. O ‘dormir’ da mocinha era somente fechar os olhos.

Camilla acordou. Estava bem melhor que no dia anterior. Ficou treinando no piano que havia na sala até o professor chegar.

O professor chato de piano apareceu. Ele era fluente em português, mas quando falava com a sua melhor aluna era somente no inglês. Iria testar a sua melhor aluna. Mandaria Camilla tocar qualquer coisa que ela gostasse. Sabia que ela se daria mal, afinal nunca ensinou nada que ela gostasse.

— Good afternoon, miss Brandão.

— Good afternoon, Mr. Jones. Can I play anything I like?

— Ok.

Camilla se sentou ao piano. Já fazia uns dez anos que ela aprendia a tocar o instrumento mais complicado já inventado pelo homem, segundo Natália. Começou quando os seus pais ainda estavam lá na casa das Pedrinhas.

— I’ll play a David Bowie’s song. It’s named “Star”. It’s my favorite song.

Estralou os dedos e começou a mandar bala nas teclas do piano. Tocando e cantando.

— “Tony went to fight in Belfast

Rudi stayed at home to starve

I could make it all worthwhile as a rock & roll star

Bevan tried to change the nation.

Sonny wants to turn the world, well, he can tell you that he tried.

I could make a transformation as a rock & roll star.

So inviting ‐ so enticing to play the part

I could play the wild mutation as a rock & roll star”.

Camilla tocou com tamanha fúria que parecia que sairia faíscas das teclas do piano. E seus pés tamanho 40 pareciam que iriam quebrar os pedais. Depois que parou de tocar, olhou para o professor, completamente suada e perguntou:

— Would you like some more, Mr. Jones?

Ele concordou com a cabeça. Nem em sonhos imaginou que a garota chegou ao nível quase profissional. Antes Camilla era uma menina indisciplinada e muito malcriada. Como ela poderia ter evoluído tanto?

— OK, here we go! I’m back on Suffragette City!

Tocou com a mesma fúria uma canção que adorava: “Suffragette City”. A essa hora, seu José e dona Fátima estavam olhando.

— “Oh, don’t lean on me man ‘cause you can’t afford the ticket

I’m back on Suffragette City

Oh, don’t lean on me man ‘cause you ain’t got time to check it

You know, my Suffragette City

Is outta sight, she’s alright”

"You know, my Suffragette City Is outta sight, she's alright”
“You know, my Suffragette City
Is outta sight, she’s alright”

Mr. Jones não acreditava no que via. As únicas palavras que encontrou foram:

— Camilla, você está de parabéns. — ele disse.

Camilla ficou espantada. O chato do Mr. Jones falava português.

— What’s going on? Can you speak Portuguese?

— Sim, eu falo. Eu não sabia que você iria tão longe em tão pouco tempo.

Ele ensinava Camilla desde quando ela tinha 9 anos. Antes, o professor de piano dela era o pai de Natália.

— Sério?

— Sério.

Depois de que o professor de piano saiu de casa, Camilla foi para a estação de trem. Saltitando toda feliz. Comprou uma carteira de cigarros, mas estava fumando somente um. Só fumava horrores quando estava nervosa.

Encontrou Luciano. Ele estava um pouco diferente. Parecia que havia passado toneladas de pó no rosto. E tinha umas marcas de maquiagem no seu rosto. Parecia que não conseguiu limpar a maquiagem a tempo.

— Ei, Lu! Que houve? Foi para uma festa a fantasia e não me convidou? — Camilla chamou o namorado.

— Não, fui para a festa de aniversário do meu primo Sérgio.

— Era do seu primo Sérgio? Pensei que o Sérgio detestasse maquiagem. Foi para a Popismo?

— Não! Fui para a festa do Sérgio. Puxa, que desconfiança. Tá com medo de me perder?

— Mais ou menos. Você está bem feliz. O que aconteceu?

— Meu professor, o Mr. Jones quase chorou com a minha apresentação no piano.

— Puxa, parabéns! O cara quase chorou? O que você tocou?

— Star e Suffragette City.

— Óbvio, sua cara tocar David Bowie. Te conheço há uns cinco anos e desde desse tempo você só ouve isso. Pelo menos na frente dos outros.

— O Levi disse que seria uma boa eu dar um tapa nesse visual.

— Pinta teus cabelos de azul, de rosa, de roxo…

— Quer saber? Vou pintar de vermelho.

— Sabia. Vermelho alienígena, deixando o seu cabelo em chamas.

— Depois do meu aniversário, tá? Vai ser semana que vem.

Camilla se despediu de Luciano; pois estavam lá perto Natália, Angie, Levi e Anabela.

— Oi, gente.

— Oi, Camilla — todos responderam.

— Sílvia entrou para uma gangue. A Gangue de Salto. — disse Levi.

— Gangue de Salto? Aquela gangue de garotas que se mete em confusão? E que tem uma ficha na polícia para cada uma das integrantes?

A Gangue de Salto (ou Salto) era uma gangue feita somente por garotas. Elas tinham esse nome porque sempre andavam de salto alto. Mas as principais armas das meninas da Salto eram os canivetes e estiletes. A criadora da Gangue, Nara, estava presa fazia um ano. As meninas da Salto eram menores de idade. E agora Sílvia, que já era perigosa sem estar em gangue, agora na Gangue de Salto seria muitas vezes mais perigosa. Só poderia ser a líder, já que tinha 19 anos.

— Aposto minha mão esquerda que o primeiro alvo será eu. — disse Camilla

— O que essas meninas teriam contra você, Camilla? — perguntou Angela.

— Nada. Mas a Sílvia me odeia desde quando me entendo por gente; tentou me bater umas cem mil vezes, mas por sorte eu tinha uns amigos que me defendiam. E eu estou com medo.

Pela primeira vez na vida Camilla queria ter os pais por perto.”

Um lugar chamado Haddon Hall

“Who Fucked Mick Jagger?” (Quem comeu o Mick Jagger?). Vi essa frase na camiseta do vocalista do Maroon5 no clipe de “Moves Like Jagger”. A palavra ‘fucked’ estava apagada (é um palavrão), mas eu já sabia o que era. Desde que eu comecei a curtir com mais intensidade rock das antigas essa pergunta martela minha cabeça. Eu já respondi e vou dividir as minhas conclusões a respeito desse assunto.Essa história se passa em outubro de 1973, aproximadamente. Envolve um casal 20 e um roqueiro pegador. Mas antes, vamos nos situar.

Mary Angela Barnett conheceu David Robert Jones quando ela tinha 19 anos e ele 22 (em 1969) e ela imediatamente se apaixonou por ele e ele por ela. Os dois eram fisicamente parecidos e tinham interesses em comum: ficar famosos, e coisas do gênero. Angie havia se encantado pelo “rosto de anjo caído” de David. Já o David se apaixonou pela garota que se vestia com roupas de homem. Na biografia do Bowie que eu estou lendo tem um capítulo dedicado especialmente a ela. Foi uma paixão fulminante. Tão fulminante que apenas um ano depois de terem se conhecido os dois casaram. E um ano mais tarde, os dois tinham uma criança. O roqueiro loiro inglês se apaixonou pela modelo americana nascida na ilha de Chipre. Angela passou a adotar o sobrenome artístico do marido. Entrou para os anais do rock como Angela Bowie, a única mulher do rock famosa por não ter entrado para uma banda e sim por ter várias músicas dedicadas a ela e por ter sido mulher de roqueiro. A mais famosa pode ter sido “Angie”, dos Stones (já falei dela em um post anterior, lembram-se caros leitores?). Mas a mais bonita é “The Prettiest Star”, do disco “Aladdin Sane” (1973). Angela é mais famosa que a atual do Bowie, Iman (e olhe que a Iman além de ser umas cem mil vezes mais bonita que a Angie, já fez clipe com o Michael Jackson). Motivo: Iman é um milhão de vezes mais discreta do que a Angie. Que quando se separou contou os podres do ex-marido para todo mundo.Havia um pequenino probleminha nessa linda historinha: os dois eram bi. Angela havia tido um caso com uma estudante, Lorraine, enquanto estudava nos EUA. E o David… não se sabe de casos documentados de que ele pegou algum cara antes de conhecer Angie, se sabe que ele pegou mulher. Uns acham que ele pegou o manager Kenneth Pitt. E os dois não se amavam. David não esqueceu seu primeiro grande amor, Hermione Farthingale, uma dançarina e atriz que haviam feito um espetáculo juntos. Parecia um casamento de aluguel, um contrato assinado oficialmente em março de 1970. A roupa da noiva: um vestido rosa com roxo. A roupa do noivo: um paletó enorme (provavelmente de lã, pois há as palavras shearling-trimmed, que são usadas para lã) e quatro braceletes de prata, pois não havia alianças. Estava claro que não daria certo.

Foto do casamento, em 1970.  EM NENHUMA HIPÓTESE, SE VISTA ASSIM PARA SE CASAR, DÁ MÁ-SORTE!
Foto do casamento, em 1970. EM NENHUMA HIPÓTESE, SE VISTA ASSIM PARA SE CASAR, DÁ MÁ-SORTE!
Angie tentando agradar a sogrinha, Peggy.
Angie tentando agradar a sogrinha, Peggy Jones.

A dupla ficou conhecida como A e D, adivinhe por que. Alegre. O casalzinho feliz morava em Haddon Hall, Londres. Mas infelizmente o lugar não existe mais. Foi demolido em 1975 e deu lugar a um estacionamento feio e sem graça. As fotos lá embaixo foram tiradas lá em Haddon Hall e são de Mick Rock.

love is a crazy thing

Ah, que bonitinho.... #Será?

"Staying back in your memory Are the movies in the past How you moved is all it takes To sing a song of when I loved The Prettiest Star"
“Staying back in your memory
Are the movies in the past
How you moved is all it takes
To sing a song of when I loved
The Prettiest Star”
"Cold fire, you've got everything  but cold fire You will be my rest and peace child I moved up to take a place near you"
“Cold fire, you’ve got everything
but cold fire
You will be my rest and peace child
I moved up to take a place near you”
"One day though it might  as well be someday You and I will rise up all the way All because of what you are The Prettiest Star"
“One day though it might
as well be someday
You and I will rise up all the way
All because of what you are
The Prettiest Star”

David Bowie em Haddon Hall, por Mick Rock

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Angie havia notado algo interessante e que pouca gente havia notado antes: o seu querido maridinho era fisicamente atraente tanto para rapazes quanto para moças. Se tivesse peito e bunda seria uma mulher. E aproveitou isso. Começou a vestir o maridinho com vestidos femininos e uns roupões meio esquisitos, antes o cara se vestia mod total (com uns terninhos e umas gravatinhas. Depois o cara caprichou no gliiiter!). Os exemplos mais lapidares são as capas do disco “The Man Who Sold The World”, de 1970; em que David aparece vestido com uma túnica que parece ter sido feito de uma cortina ou daquelas colchas de cama baratas, mesmo sendo de seda (abaixo) e do disco Hunky Dory, de 1971; em que o David aparece com um visual feminino, inspirado em Marlene Dietrich, uma atriz alemã que ele adorava e que parecia muito com Veronica Lake, outra atriz (mais embaixo). Quando minha irmã que gosta de funk viu as duas capas ela disse assim:

É esse aí o David Bowie? Parece uma mulher.

— É sim. Não acredita?

— Não. Ele é boiola?

— Depende do seu ponto de vista. De uma certa forma, sim. The-Man-Who-Sold-The-World hunkydory

Angela dava pitacos na carreira de Bowie e chegou a mandar despedir um dos empresários da MainMan, que administrava a carreira do David. Quando não estava cozinhando ou metendo o pau no povo que trabalhava com o marido, ela desenhava e costurava as roupas de show do marido e de sua banda.Quando eu li uma parte de uma biografia do Bowie eu ri. A banda Hype, criada para a turnê de “Space Oddity” (1969/1970), tinha uns figurinos esquisitíssimos e o povo tinha uns nicks (apelidos) meio idiotas, admito. Influência de Alice Cooper. O Bowie era o Rainbow Man (sua roupa era como um prisma com todas as cores do arco-íris, ui!), Tony Visconti (baixista) era o Hype Man (um baixista super-herói), John Cambridge (baterista) era o Cowboy Man (com direito a chapéu e franja) e Mick Ronson (guitarrista, famoso pelo episódio da quase-felação descrito anteriormente) era o bem-vestido Gangster Man. (Fonte: SPITZ, Mark. Bowie – A Biography, New York, Crown Publishers, 2010. ISBN:978-0-307-46239-8. Páginas 250 a 254, se estiver no PDF.). Tem uma edição em português da Editora Desiderata, mas eu li na versão em inglês e que pro meu azar não tem muita foto.Cadê o arco-íris?

E o carnaval não acabou. Na fase super-hiper-mega glitter do David Bowie (Ziggy Stardust total), aconteceu o episódio citado lá em cima, no primeiro parágrafo do desenvolvimento do meu texto. Vamos falar do Ziggy? Só aí arremato com a história que introduzi no começo.Em 1972 saiu “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”. Entra na categoria “disco conceitual”, como diversos trabalhos do Bowie. Conta uma historinha (que eu já contei nesse post) de um roqueiro alien com voz em falsete que pira com o sucesso que lhe sobe à cabeça e se mata, um verdadeiro Rock’n’roll Suicide. E nos shows David não era David, era Ziggy. Ponto.

“Call me Ziggy, call me Ziggy Stardust!” (Me chame de Ziggy, me chame de Ziggy Stardust!)- Bowie (1972)

 

Os shows eram episódios a parte: eram intensos ao extremo, e cheios de “fluídos” na plateia (nem queiram saber de onde vêm). E o Bowie meteu o pau com gosto de gás. Em uma entrevista para o Melody Maker (vou citar esse periódico de novo em um próximo post, aguardem!) ele admitiu o seguinte: “Eu sou gay e sempre fui, desde que era David Jones”. E arrematou com essa frase: “Não sou ridículo. Sou David Bowie”. Foi como se tivesse caído uma bomba nuclear. Ou uma bomba de purpurina. (Fonte: SPITZ, Mark. Bowie – A Biography, New York, Crown Publishers, 2010. ISBN:978-0-307-46239-8. Páginas 316 a 331, se estiver no PDF). Resumi isso tudo em um parágrafo.

oh,u pretty thing!oh,u pretty thing!2

Essa fotografia se relaciona com uma postada anteriormente. A da quase-felação.
Essa fotografia se relaciona com uma postada anteriormente. A da quase-felação.

Nessa época em que David Bowie fazia questão de admitir que era gay em todas as nuances possíveis e impossíveis dos seus ruivos cabelos, um outro roqueiro não sabia o que queria da vida. Se gostava de homem, de mulher…Mick Jagger, o pegador, começou a virar o pal (Pal é colega. Vocês devem ter pensado besteira, tipo que pal é caralho… caralho é outra coisa) de David Bowie. Ele estava se recuperando dos excessos das gravações do disco “Exile on Main St.”, de 1972. Pelo que eu soube a suruba foi tão louca que Mick Taylor (guitarrista que substituiu Brian Jones, morto em 1969), que não bebia nem vinho antes de começar a gravar saiu das gravações viciado em heroína (culpa do Keith!). A putaria deve ter sido grande na mansão do Keith Richards na Riviera francesa. Pelo que peguei na net sobre esse disco, tinha montes de garotas que não eram as esposas dos integrantes. O resultado de tamanha putaria foi um dos melhores discos da história. Depois conto com detalhes sórdidos o que deve ter rolado.Mick-Jagger-Andy-Warhol-1975Capa e contra-capa do disco Exile on Main St., de 1972.Em outubro de 1973, Angie foi viajar com uma amiga. Voltou uma manhã e foi para a cozinha fazer chá. A empregada, que havia chegado uma hora antes, avisou que havia alguém mais no quarto. Ao abrir a porta, a mulher encontrou a seguinte cena no seu “ninho de amor” ainda em Haddon Hall: deu de cara com Mick e David dormindo PE-LA-DOS. Ambos acordaram. “Oh, olá, como está você?”, perguntou Bowie. “Estou bem”, respondeu Angela, oferecendo café à dupla. “Estava na cara que eles tinham transado. Nunca considerei a possibilidade contrária”, segundo as palavras de Angie. Imaginei o que ela pensou.NADA! No livro “Backstage Passes”, lançado em 1981, em que Angie conta a maior parte dos podres do seu ex-marido (os dois se separaram em 1980 e ela conta mais podres em outro livro, “Free Spirit”) ela revela que não viu os dois tendo intercourse (palavra do inglês para relação sexual), mas pelo olhar assustado dos dois ela teve que admitir: provavelmente Mick transou com Bowie. Ou o contrário, que foi o mais provável. Ela afirma que os dois podem ter dormido na mesma cama após uma noite de bebedeiras e uso de drogas. A prova do crime.

Namoro ou amizade? Escolha!
Namoro ou amizade? Escolha!

Mas o rock é tão maluco que quase dez anos depois desse episódio o David e o Mick lançaram um single juntos: Dancing in the Street, para o Live Aid (1983). Angela Bowie (mesmo depois de separada ela manteve o sobrenome artístico e o real do ex, ela é Mary Angela Jones) em uma entrevista recente para o tabloide inglês The Sun dada neste ano (no link abaixo) contou um dado interessantíssimo: David sentia atração pelo povo que rivalizava com ele na música (na época: Marc Bolan do T-Rex, Alice Cooper, , o povo do Led Zeppelin, dos Stones, dos Beatles, do Queen, imagina esse povão todo na cama da Angie!). Angie ainda contou mais detalhes sórdidos do caso Mick and Bowie, como que a empregada riu quando ela chegou naquela manhã e disse que os dois estavam ‘se trocando’, que o Bowie estava todo coberto de almofada, provavelmente para esconder a nudez (Acho que ela só reconheceu o marido pelos cabelos Red Hot Red, que era a cor da tintura e pelo ‘snow White tan’, bronzeado branco como neve), que viu uma perna do Mick entre as almofadas do outro lado da cama (e o resto do corpo do cara, também), que os dois estavam tão bêbados que dava uma peninha. Que quando casaram ele fez questão de dizer: “Eu não te amo”, que seis semanas antes de casar encontrou com 14 pessoas com quem seu querido ex-marido havia tido, pelo menos intercouse (e tinha homem no meio), que ele só casou com ela porque queria um amparo psicológico (pouco tempo antes, o pai do David havia morrido de pneumonia). E ainda por cima ela meteu o pau no disco novo do ex, disse que estava um lixo, que desde a Trilogia de Berlim (“Heroes”, Low e Lodger) tudo que o David lançou era um completo lixo. Dor de cotovelo? Pode ser. E eu achando que três livros haviam sido o bastante para contar os podres do Bowie… Imagina se a Iman se separa e resolva engrossar a lista de podres de David Robert Jones, a.k.a David Bowie…

Pra não dizer que eu só fiquei falando da Angie, olha a Iman. Acho que ele fez uma boa escolha. (Acho não, tenho certeza!).
Pra não dizerem que eu só fiquei falando da Angie, olha a Iman. Acho que ele fez uma boa escolha. (Acho não, tenho certeza!).

Se você se interessou, tem uns sites legais. São os seguintes: Bowie Wonder World, Teenage Wildlife , The Ziggy Stardust Companion. Todos estão em inglês e dá para entender um tiquinho do que rolava no clã Bowie naqueles tempos. Mas é melhor ter um bom dicionário de inglês ou ser fluente. Mas vocês devem estar se perguntando: o que essa história tem a ver com o “Cadê a Luz do Fim do Túnel?”. Camilla descobre que seu namorado se veste de mulher. E para piorar, ele é bi.

Ao som de: “Five Years”, “Soul Love”, “Moonage daydream”, “Starman”, “It Ain’t Easy”, “Lady Stardust”, “Star”, “Hang onto Yourself”, “Ziggy Stardust”, “Suffragette City”, “Rock ‘n’ Roll Suicide” e …” The Prettiest Star” (cujos pedaços da letra eu escrevi na sequencia de fotos da Angie com o Bowie lá em cima).

Cadê a luz do fim do túnel? (personagens) (parte 1)

CAMILLA BRANDÃO GOMES: uma jovem de 15 anos de idade, que mora com os avós. É alta, magra, tem olhos cinza-azulados, e no começo da narrativa tem cabelos pretos longos com mechas roxas. No meio da narração, ela corta seus cabelos e pinta-os de vermelho. Tem um namorado, Luciano, que é crossdresser. E diversos amigos fiéis como Natália, Levi, Anabela, Angela e outros. Mas ao mesmo tempo a moça coleciona inimigos como Sílvia e sua Gangue de Salto, que querem atrapalhar a vida da garota. No quarto tem diversos cabos pendurados no teto, um computador, uma vitrola com diversos discos e uma máquina de costura. E se chama “Camilla’s ground control”. Sua grande paixão é invadir computadores dos outros sem autorização. Sempre com êxito. A Camilla gosta de filmes antigos e de rock clássico. Seu grande ídolo é o cantor inglês David Bowie. Ela é tão fã dele que tem na porta do seu guarda-roupa um pôster original do filme “Apenas um Gigolô” (1979), que seus avós lhe deram de presente de 14 anos e a trilha sonora do filme “Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída…” (1982). O pôster veio da Inglaterra e o disco veio do Japão. Toca guitarra, bateria e piano. Em uma parte da narrativa Camilla aparece tocando ao piano uma versão de sua música favorita: “Star”, do disco “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and Spiders from Mars” (1972).

Ela mora com seus avós desde quando tinha cinco anos, quando seus pais foram viajar. Deveriam passar dez dias fora, mas se passaram dez anos e eles não haviam voltado. Camilla se transformou de uma menina gentil e sensível em um ser amargo e duro, com raiva. Mas fingia tão bem que estava bem que ninguém lhe perguntava como se sentia. Somente quando fica sozinha em seu quarto ela se desmancha em lágrimas. Seu acessório fashion é um par de óculos escuros, para poder esconder os olhos inchados. Nos pulsos há uma marca reta e marcas de pontos, que indica que foram cortados. Não foi tentativa de suicídio, foi um acidente.

A jovem é fruto de uma combinação explosiva: nasceu de um relacionamento sem amor, foi abandonada pelos pais com apenas cinco anos, seus avós a criaram praticamente sem nenhum tipo de regra e ela se começa a se viciar em cigarros e bebida ainda adolescente. E como se não bastasse, Alexandra disse que “Camilla fodeu a sua vida”. Quando a filha descobre isso, entra em choque. E começa a tomar remédio tarja preta. Isso com apenas 13 anos, na mesma época que começa a fumar. A medicação havia sido suspensa pouco tempo antes do início da narração.

Mais tarde, há um baile de formatura. O vestido do baile de formatura foi desenhado e costurado por ela. Nesse baile descobre que o namorado se veste de mulher.

Quando os seus pais voltam, depois da festa de aniversário de 16 anos, Camilla se revolta. Ela pinta os cabelos de vermelho, começa a fumar mais intensamente. Começa a andar com um canivete escondido na bota (vermelha) no pé esquerdo e usa o cigarro como uma arma (queimando seus desafetos). E resolve mostrar à Gangue de Salto que quem manda é ela e sua turma, a TVC 15. As duas turmas se enfrentam numa velha estação de trem. Em uma briga típica de mulherzinha: cheia de puxões de cabelo, unhadas, mas canivetes em punho. Camilla sai ferida na perna, um golpe de faca. E vai presa, mas fica somente duas horas atrás das grades, pois alegou legítima defesa.

Depois da libertação de Camilla, há uma lavagem de roupa suja. Alexandra e Carlos contam a sua filha o motivo do sumiço repentino que durou dez anos.

Na continuação Camilla tem 18 anos, ainda namora Luciano e já faz faculdade de Moda. Seus cabelos estão alaranjados com as raízes loiras, em referência ao filme “O Homem que Caiu na Terra”. E continua com a sua devoção a David Bowie. Mas quem entra para o vício é a pequena Rosie, que se vicia em álcool para aguentar a barra.

ALEXANDRA BRANDÃO E CARLOS GOMES: pais de Camilla. Carlos tem 39 anos e Alexandra tem 35. Alexandra Brandão era uma modelo, que engravidou de Camilla e teve que parar a carreira promissora. Fez faculdade, mas quando estava prestes a se formar engravidou novamente, dessa vez de Rosalyn. Se mandou junto com o marido para Nova York, mas em vez de passar dez dias fora, esses dez dias se transformaram em dez anos. Alexandra teve um caso com o médico que fez o parto da pequena Rosie, o Dr. Andrews, e engravida dele, mas perde o bebê. O motivo do sumiço repentino só é explicado no fim da narrativa, em que Alexandra e Carlos vão encontrar Camilla, que estava presa por causa da briga. O casal e Rosie passaram cinco dos dez anos em que estiveram fora em Berlim. Alexandra é fisicamente parecida com Camilla, mesmo depois que a garota pinta os cabelos de vermelho, exceto na cor dos olhos. Camilla tem olhos claros e Alexandra tem olhos castanhos.

Carlos Gomes (que tem nome de compositor erudito) era herdeiro de um conglomerado imobiliário e casou-se com Alexandra depois de descobrir que a modelo engravidara. Carlos não sabe que Alexandra teve um caso com o Dr. Andrews, mas teve um caso com a secretária do médico, Rochelle. Depois de uma viagem de dez anos em companhia da esposa e da filha mais jovem, os três voltam para o Brasil e reencontram a filha mais velha, Camilla. Que havia mudado bastante. Rosie é fisicamente parecida com o pai: loira e de olhos castanhos.

ROSALYN BRANDÃO GOMES (ROSIE): filha de Alexandra e Carlos, irmã de Camilla, tem 10 anos. Rosalyn é o nome de uma música da banda The Pretty Things. Fisicamente parecida com o pai, é uma menina muito tranquila e gentil. Fala quatro línguas: português, inglês, espanhol e alemão. Rosie se despede dos outros em alemão: Auf Windersen (Até logo)! Alegre, cheia de vida, gostou da irmã que acabou de conhecer. Ficou muito triste quando descobriu que Camilla estava presa por causa de uma briga de gangues. Diferentemente da irmã, que gosta de David Bowie e rock clássico, Rosie gosta das estrelas da Disney e da Nickelodeon. Rosie é muito fã de Demi Lovato e sonha ir para um show dela. Mas começou a ouvir o que a irmã escutava e gostou.

SEU JOSÉ BRANDÃO E DONA FÁTIMA BRANDÃO: avós de Camilla e pais de Alexandra. Seu José tem 65 anos e dona Fátima tem 60. Criaram a netinha mais velha com muita liberdade e poucas regras. A única regra que os avós fizeram questão que a neta seguisse: tirar excelentes notas. Eles não ligam para os cabelos meio esquisitos da netinha. Mesmo depois que os pais voltam, Camilla continua a morar com os avós, pois enxergava neles a figura paterna e materna. Mesmo que Camilla tenha entrado em uma gangue e tenha sido presa por perturbação da ordem pública, não se arrependem da criação da neta. Porque provavelmente a filha deles, Alexandra, daria uma criação pior para Camilla.

LUCIANO DE ASSIS LOPES: namorado de Camilla e tem 18 anos. É muito alto e magro e não tem nenhum pelo nas sobrancelhas. Quando a namorada entra para a gangue TVC 15 não se importa muito, até que ela vai presa e ferida. Luciano se veste de mulher por prazer, não por opção sexual. Em uma parte ele aparece vestido com uma das criações da namorada, que criou uma Maison, depois de sair da gangue TVC 15: Haus of Milla.

LEVI MATOS: braço direito e esquerdo de Camilla, tem 16 anos e tem uma namorada, Angela. Amigo de Camilla de longa data é o mentor intelectual da TVC 15. E chama sua namorada para integrar a gangue. No início Angela não aceita, mas entra.

NATÁLIA LOPES: grande amiga de Camilla e irmã de Luciano. Adotada pelos pais de Luciano quando tinha 2 anos, Natália chega a entrar para a TVC 15, mas sai por não suportar a violência. Natália é uma garota amiga, muito inteligente, e que sempre está rindo.

ANABELA MATOS: amiga de Camilla e irmã de Levi, tem 15 anos. Cega de nascimento precisa de ajuda para coisas simples: como amarrar o sapato, e andar por aí. Desaprova a gangue da irmã e a TVC 15.

ANGELA PRADO: mais conhecida como Angie, trabalha na biblioteca, tem 17 anos e é namorada de Levi. Acaba entrando para a TVC 15 porque Sílvia estragou os livros da biblioteca.

When I was young, so much young…

"e na porta um pôster do filme 'Apenas um Gigolô'"
“e na porta um pôster do filme ‘Apenas um Gigolô'”

Mais um episódio de “Cadê a Luz do Fim do Túnel?”. Mostra a Camilla mais velha, com 15 anos, e apresenta seus amigos. Ela cresceu e virou uma adolescente muito diferente das outras da sua idade.

“Camilla estava voltando do colégio, com um celular de última geração em uma mão e um estojo de maquiagem de cores bem chamativas na outra. Deu um beijo na avó e subiu para o seu quarto. Jogou a mochila na sua cama.

— Tire seus óculos, minha filha! — disse seu José. A neta nem ouviu.

O quarto da moça era um caos organizado e parecia uma estação de controle de missão espacial. Tinha uma porta-alçapão, que se entrava por uma pequena escada. Tinha cabos pendurados no teto, diversos monitores espalhados pelo quarto, um velho guarda-roupa e na porta um pôster do filme “Apenas um Gigolô”, uma guitarra na ao pé da cama, e em uma parede um desenho de circuitos eletrônicos. Na parede oposta, havia uma sequencia de zero e um. Código binário. E na frente da parede, um espelho. Uma enorme janela mostrava uma vista maravilhosa, mas que não a atraía mais havia tempos. E uma parte do teto era de vidro à prova de balas, que dava para ver as estrelas. Tinha ainda um velho toca-discos, que gostava muito de brincar com ele. Também montes de LPs que eram de Alexandra. Destoava daquele visual modernoso. Tinha uma máquina de costura e uma velha escrivaninha cheia de papeis. Aquele quarto se chamava “Camilla’s Ground Control”.

Sabia que seus pais estavam sumidos havia muitos anos. Camilla já tinha 15 anos e nada de Alexandra e Carlos. E ela sabia que sua mãe estava grávida, teria uma menina chamada Rosalyn. Mas onde estariam eles? Será que eles ainda lembravam que tinham uma filha?

Parou de pensar nisso. Saiu do quarto. Foi ao banheiro lavar o rosto. Antes, tirou as lentes de contato.

Camilla era pálida, talvez fosse por causa da maquiagem. Mas não era por maquiagem em excesso, era porque quase nunca tomava sol. Tinha olhos cinza e cabelos pretos, iguais aos da mãe, tinham algumas mechas roxas e era muito magrinha (1,70m e apenas 49 quilos). Seus avós não reclamaram das esquisitas mechas arroxeadas. Só queriam que a netinha fosse a melhor aluna do colégio. Podia mexer no computador até de madrugada (ela nem dormia), sair para dançar nas festinhas, mas tinha que mostrar o boletim cheio de notas 10. E sempre mostrava.

Tinha um namorado que a idolatrava: Luciano. Era um cara que já fazia faculdade e tinha 18 anos. Não era perversão de menores, pois quando começaram a namorar ele ainda tinha 17. Os dois se gostavam bastante. Não parecia ser um namoro, parecia mais uma grande amizade. E no fundo era isso, uma amizade muitíssimo forte. Um namoro de sete meses.

Era hora do almoço, Camilla desceu de sua estação espacial e foi comer. Dona Fátima preparava a comida com muito carinho, mas ao mesmo tempo, estava um pouco doente. Camilla sentia pena da senhora de cabelos brancos que sentia muita saudade da filha desaparecida há dez anos. Como Fátima e José não tinham outros filhos, os dois ficaram muito tristes quando souberam que a filha sumiu. Cuidavam de Camilla como uma princesa. Mas exigiam que a menina fosse a melhor aluna do colégio. Iria chamar seus amigos para uma festa, mas desistiu.

Natália era a melhor amiga de Camilla. Era irmã de Luciano e tinham uma sólida amizade. Natália tinha repetido diversas vezes de ano. E estava estudando com Camilla já fazia uns dois anos.

Levi era um filho de um amigo dos Brandão. Tinha 14 anos e gostava das roupas de Camilla, que não combinavam de jeito nenhum. Adorava as dicas de roupa e maquiagem que ela dava.

Sílvia era irmã de Levi. Não gostava muito de Camilla, e detestava as galochas vermelhas da amiga do irmão. Aquilo era um horror, que horror! Sílvia detestava o fato de que Camilla era rica e se vestia muito mal (misturar as galochas vermelhas com jeans esfarrapados) e ela apesar de ser elegante, era pobre. Sentia inveja da amiga do irmão e abominava a sua outra irmã, Anabela.

Já era uma da tarde. Hora de checar e-mails, ler as notícias, entrar no Facebook, fazer o dever de casa, jogar on-line com os amigos. Sempre ao som dos vinis da mãe. Como o quarto tinha isolamento acústico, os avós quase nunca reclamavam do barulho.

Sem avisar, aconteceu algo desagradável para Camilla. A energia do sítio havia caído. Simplesmente detestava quando a energia terminava. Ficar pelo menos uma hora sem mexer na internet para ela era um terror! Desligava não só o computador, mas também o roteador, a televisão, o telefone, o velho toca-discos de Alexandra, tudo. E seu celular estava sem créditos.

De repente, olhou para o céu, já era uma noite cheia de estrelas. Ela não via as estrelas fazia muito tempo, nem pelo computador sentia vontade de ver aqueles pontinhos brilhantes que podiam já ter acabado há milênios.

Para matar o tédio, foi pegar sua velha guitarra com uma lanterna e tentou tocar “Eduardo e Mônica”. Estava meio enferrujada, não tocava nada fazia meses.

— “Quem um dia irá dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo coração”… Porra, eu quebrei uma unha.

Pegou uma velha palheta que estava embaixo da cama e tentou tocar o resto da música. Conseguiu tocar a música completa com alguma dificuldade, depois foi voltar os seus olhos para o céu.

— Ontem eu era uma menina superprotegida que tinha uma certa felicidade, e que perdeu tudo isso quando seus pais sumiram. Preciso de alguém para poder conversar…

Pegou o celular e discou o número de Luciano:

— Alô, Luciano?

— Camilla? — uma voz aveludada atendeu o celular.

— Você pode me dizer se pode conversar comigo agora?

— Claro, vamos. Faz tanto tempo que a gente não conversa…

— Dá para vir para cá?

— Tá.

O sítio dos Brandão (o sobrenome dos pais de Alexandra) ainda estava às escuras. Depois de uma hora e meia, um barulho de moto. Era Luciano. Ainda estava escuro, pois a energia não havia voltado.

Luciano era um rapaz alto, uns dez centímetros mais alto que sua namorada. Estava com uma lanterna em uma mão. Ele não tinha sobrancelhas. Era muito comprido e magro.

— Porque você me chamou? Tá triste? — Luciano perguntou.

— Mais ou menos. Já te contei que meus pais sumiram e ninguém sabe onde eles estão?

— Montes de vezes. Para onde eles foram?

— Eles iriam para Nova York. Papai tinha uns negócios para resolver por lá. Eles deveriam estar em casa dentro de dez dias. Já se passaram dez anos e nada.

— Nem mesmo uma informação de se eles estão bem?

— Nada. Revirei sites de desaparecidos da polícia, sites de desaparecidos da Interpol, cartas que meus avós recebiam. E nada. Nem um pio, que dirá uma informação.

Como estava um dia frio, Camilla pegou um cobertor e se enrolou ao lado de Luciano.

— Faz quanto tempo que a gente não conversa como dois adultos? —perguntou Luciano.

— Oficialmente não sou adulta, tenho só quinze anos. Vou fazer minha maioridade daqui a três anos, esqueceu?

— É, me esqueci… desculpa.

Estava tocando uma melodia meio esquisita: V-2 Schneider. Os avós de Camilla simplesmente detestavam essa música, mas era de um dos discos favoritos da netinha: a trilha sonora do filme “Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída…”, que era de Carlos. A energia tinha voltado, pois o toca-discos estava tocando feliz.

— Como a energia voltou e eu nem senti? — perguntou Camilla.

— A gente estava conversando, nem notamos o tempo passar.

— Desliga esse som, Camilla, estamos tentando assistir televisão! — gritou dona Fátima.

A portinhola do quarto estava aberta. E assim não tinha isolamento acústico que resistisse.

— Você não gosta do que a maioria gosta. Seu quarto quase não tem livros…

— Eu perdi a vontade de ler. Eu ficava morrendo de dor de cabeça quando lia. Nem toco mais nos meus livros de programação. Já estão criando poeira. — e Camilla deu um risinho forçado.

— Desce aí, Camilla! Você e o Luciano estão fazendo o que não presta? — disse seu José.

— Não, vô. Ele nunca me tocou, nem um milímetro. A gente é só amigo.

Já passava da meia-noite. Como Luciano não tinha habilitação teria que ficar no quarto da namorada até o dia amanhecer. Senão levaria multa.

Seis da manhã. Novamente V-2 Schneider. Como se não bastasse ser a música que os avós da menina detestassem, ainda era o despertador de Camilla.

— Não tem nada melhor para ouvir? — disse Luciano.

— Ter até que tem. Só que eu não quero. — disse Camilla.

O celular começou a tocar uma música que Luciano amava: Diamonds.

— Você gosta da Rihanna? Sua carinha é de menininha roqueira — Luciano perguntou, meio espantado.

— Gosto sim da Rihanna. Olha, eu misturo as coisas todas. Eu gosto de tudo. Se tocar um arrasta-pé, eu não dispenso. Se tocar um bate-estaca, eu não dispenso de jeito nenhum. Eu não tenho preconceito com música, não.

Luciano adorava a sinceridade de sua namorada. Era assustadora, mas a verdade doía. Pegou o celular da Camilla. Olhou todas as músicas que tinha:

— Jackson do Pandeiro, Banda Calipso, Dado Villa-Lobos, a já citada Rihanna, Legião aos montes, Engenheiros, Nirvana, Katy Perry, Aerosmith, Luís Gonzaga, Led Zeppelin, Beatles, Capital Inicial, Marcelo Bonfá, Superman Is Dead, The Kinks, Bob Dylan, Seu Jorge, Renato Russo, música de musical da Broadway, NX Zero, Fresno, Inimigos do Rei, John Lennon, Bruno Mars, Amy Winehouse, The Who, David Bowie, Pink Floyd, Rolling Stones, Joy Division…tem coisa que eu nunca vi na minha vida.

— Vivendo e aprendendo… Se quiser a trilha sonora do filme da Christiane F., eu te empresto o CD. Importado do Japão, era do meu pai. E o DVD também, se quiser… Já leu? Lembro que te emprestei o livro uma vez.

— Eu já li, fiquei uns dias sem comer. Repugnou-me aquele lance de injetar algo na veia.

Camilla pegou uma carona com Luciano. Até a estrada, onde iria pegar um ônibus.

— Vovô e vovó podiam me pagar um motorista particular. Mas isso é para aprender o valor das coisas. Legal, aprendi a lição. Quero uma bicicleta. Nem bicicleta eu tenho…

Ela estava com suas botas vermelhas, que eram da mãe. A farda do colégio estava encoberta por uma jaqueta de couro que era do pai. E as calças jeans que ela usava desde os 13 anos estavam lá, inteiras. Dificilmente comprava novas roupas, porque praticamente não crescia.

— Que merda, ter que andar com uma bota no meio do mato. Estragou tudo. — disse Camilla, tentando limpar as botas meladas de lama.

Alguns minutos mais tarde, apareceu Levi. Junto com ele, apareceu Sílvia. Ela olhou para as botas vermelhas meladas de lama de Camilla. Acho-as muito feias. E ainda o cabelo cheio de mechas roxas lhe dava nos nervos. Que menina sem elegância, pensou.

— Uma menina riquinha, que se veste como uma molambenta. Meu Deus, como existe gente sem classe… — disse Sílvia.

— E daí que eu me vista como uma molambenta? Meus avós nunca reclamaram da roupa que eu visto. Não só meus avós, ninguém reclamou — respondeu Camilla, de maneira meio ríspida.

— E cadê os seus pais, menininha bastardinha?

— Eu não sei. Eu não devo satisfações da minha vida para você, Silvinha Couro Mole.

O apelido de Sílvia era Silvinha Couro Mole, porque ela tomava muitos safanões e sempre chegava em casa com montes de hematomas. E não era Camilla que fazia isso.

E o celular de Silvinha tocou um funk, do Bonde das Maravilhas. Camilla riu.

— Uma menina que se diz classuda ouvindo funk. E no fim sou eu que sou da ralé. — riu Camilla. — “Faz quadradinho de oito, Faz quadradinho de oito…”.

— E daí? Eu gosto do que eu quiser. — disse Sílvia.

— Tem pelo menos uma ópera do Wagner? Ou Wagner é só o teu namorado? Gente que se diz classuda tem que ouvir música clássica.

— Ora, sua…

Levi teve que intervir, senão o couro iria comer. Camilla era muito mais forte que Sílvia. Mesmo sendo fisicamente frágil.

— Ei, suas duas brigonas, olha quem vem ali, a Natália!

Natália era filha de uma família decadente, e era adotada. Sua vida estava destinada ao fracasso, mas ela se divertia com sua novela mexicana (como dizia que sua vida era). Ensinava a quem tivesse consigo que “a vida é uma festa, aproveite”.

— Oi, gente. — disse Natália, com sua voz baixa. — O que está pegando? A Camilla está quase sentando a mão na cara da Sílvia?

— Quase. Ainda bem que você chegou, senão a pobre da Sílvia estaria cheia de hematomas. — disse Levi.

Anabela apareceu com sua bengala. A menina era cega, mas detestava que lhe dissessem isso.

— Oi, gente. Perdi alguma coisa?

— A briga do século! Camilla vs Sílvia! — disse Natália.

— Eu queria ter visto isso. — disse Ana.

Todo mundo riu, menos Sílvia.

E Camilla começou a cantar de repente, uma coisa que ela fazia bastante:

— “Tô com saudade do Jackson do Pandeiro. Tô com saudade, que é coisa de brasileiro”…

— Essa menina é louca? — perguntou Sílvia.

— Não sou não. “Tô com saudade do Jackson do Pandeiro. Tô com saudade, que é coisa de brasileiro”… — disse Camilla.

— Essa menina é louca? — perguntou Sílvia.

— Não.

E Camilla de novo ficou cantando:

— “The return of the Thin White Duke, throwing darts in lovers’ eyes”…

— Não aguento mais. Vou ligar para o Wagner para vir me buscar, essa menina é louca. — e saiu. Minutos depois, apareceu Wagner, um cara quase transparente e cheio de espinhas.

E Camilla:

— “Here are we one magical movement From Kether to Malkuth. There are you, you drive like a demon From station to station!”

— Camilla, isso é contagioso? — disse Levi.

— Não é. Eu gosto demais de cantar. Você não tem ideia. Canto até quando estou hackeando. — e riu.

O ônibus chegou. No ônibus, o pessoal cantou Faroeste Caboclo.

— “Não tinha medo o tal João de Santo Cristo, era o que todos diziam quando ele se perdeu. Deixou prá trás todo o marasmo da fazenda, só prá sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu”…

Depois da farra no ônibus, Camilla fingiu estar absorta em um livro sobre a Teologia da Libertação. Ela só tinha aquele exemplar (que nem dela era, era do professor de Filosofia) para mostrar ao avô, que adorava Filosofia.

O celular tocou. Um texto pequeno, SMS:

“Camilla, seu passado esta na sua frente”.

Não tinha remetente. Quem era?”

Outros livros que eu a-d-o-r-o!

Não fico lendo só aquele livro da Christiane F., gente. Por exemplo: estou lendo um livro do George Orwell chamado “1984”. Se passa em uma sociedade totalitária, em que todo mundo é vigiado pelo Grande Irmão, e tem que seguir as ordens, senão estará fodido. Winston Smith, um funcionário do Governo se apaixona por Julia, uma ativista disfarçada de funcionária do Governo que pede o fim desse regime fascistóide. Eu tô gostando desse livro. Big Brother is watching you, guy.

Outro livro que eu amei ler é “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley. Se passa em um futuro em que os seres humanos já sabem o que vão fazer pelo resto da vida desde que nascem. São divididos em alfas, betas, gamas e ômegas. Os dois primeiros vivem no bem-bom, os outros ralam pelo resto de suas vidas. Quando li, lembrei de um filme “Gattaca”, em que acontece justamente isso. Um apartheid genético. Infelizmente isso é uma possibilidade real. Mete medo para caralho!

Mais um livro que eu gosto é “Pippi Meialonga”. A vida de Píppi é um pouco fora dos padrões: mora na Vila Vilekula na companhia de um cavalo e do Sr. Nilson, seu macaco de estimação. E os seus pais? Sua mãe havia morrido quando ela ainda era um bebê e seu pai, um capitão de navio que sumiu depois de uma tempestade, sobrevivera ao naufrágio e, desde então, se transformou no rei dos canibais de uma ilha distante. Antes de sumir, deixou uma arca cheia de moedas de ouro para a filha que passou a ser dona do seu nariz, embora toda a cidade estranhe aquela situação. Quando a coisa parece que vai desandar, ela diz: “não se preocupem comigo, eu sempre dou um jeito”. E ela dá mesmo. A Pippi é base de outra personagem norueguesa, a Lisbeth Salander, uma hacker tatuada da trilogia “Millenium” de Stieg Larsson, o maior sucesso da literatura norueguesa.

Tem outros dois livros infantis que eu gosto demais, que é de um autor galês chamado Roald Dalh. Os dois viraram filme: “Matilda” e “A Fantástica Fábrica de Chocolate”. “Matilda” é de uma menina super dotada que é praticamente rejeitada pelos pais, adora ler, e que detesta a diretora da escola em que estuda e quando adquire poderes mentais resolve usar suas novas habilidades para expulsar a megera da diretora. Acho que você, caro leitor, já deve ter visto esse filme; passou bilhões de vezes na Sessão da Tarde. “A Fantástica Fábrica de Chocolate” é bem mais conhecida, por causa da adaptação para o cinema do Tim Burton com o Johnny Depp. Conta a história de Charlie, um menino pobre que acha o Cupom Dourado para entrar na Fábrica de Chocolate do sr. Willy Wonka. Um lugar simplesmente maravilhoso.

Além disso,  estou lendo o YouCat em inglês. Para quem não sabe: o YouCat é o Catecismo Jovem da Igreja Católica. Eu sou católica, mesmo que não pareça. Ainda vou fazer a Crisma, e preciso entender melhor a religião que sigo. Lendo o YouCat em inglês faço dois trabalhos: melhoro o meu inglês e entendo melhor a religião que sigo.

Livros que eu quero ler de um jeito ou de outro: “Renato Russo: O Trovador Solitário” (biografia do Renato Russo), ”Renato Russo: O Filho da Revolução” (biografia COMPLETA do Renato, contextualizando a história do Renato com a do Brasil), “Levadas e Quebradas” (coleção de textos de Fê Lemos, baterista do Capital Inicial), “Strange Fascination: David Bowie, The Definitive Story”, “Moonage Daydream: The Life & Times of Ziggy Stardust” (tem somente fotografias. Mas são lindas, diga-se de passagem), “Como Se Não Houvesse Amanhã: 20 contos inspirados em músicas da Legião Urbana”, “No Direction Home” (biografia definitiva de Bob Dylan), “Mate-me, por favor: Uma história sem censura do punk”, “De acordo com…Rolling Stones”, “O Pequeno Livro dos Beatles”…

Agora, os livros clássicos que eu quero ler de um jeito ou de outro: “Os irmãos Karamazov”, “A Mulher de Trinta Anos”, “As Portas da Percepção”…

Ao som de :” Diamond Dogs”, “Travessia do Eixão”, etc..